Naquele dia, como em todos os outros, o carrinho aparecia ao fundo da rua, ainda com as brumas da madrugada a pairar no ar. O chiar da roda, era insonoro, mesmo antes do buliço na esquina da Rua Augusta com a Rua da Betesga. Nos bolsos do sobretudo, envoltos em folhas de jornal do dia anterior, as pedras aquecidas no borralho do fogareiro permitiam ao frágil corpo se manter no frio daquela manhã. Os pés enregelavam-se sobre a calçada coberta com uma fina camada de geada que desapareceria aos primeiros passos do corrupio da cidade.
Por fim parava de empurrar o carrinho. Por fim abria a caixa, colocava o baldinho de chapa a jeito, e, como um sopro, como se todo o mundo dependesse daquela manivela de latão polido, como se nada respirasse antes daquele instante, como que se tudo estivesse morto antes daquela manivela começar a rodas. E naquele instante, no momento em que o fole enchia, em que a primeira nota ameaçava tocar, e a vida na rua começava.
O realejo encheu a rua de sons, de musica, daquela musica que enchia de vida a mortandade dos dias, o ruído metálico, a música que animava o inanimado….e que, eu parar, voltava a mergulhar toda a rua naquele marasmo, na solidão da noite que já era.
Altura de fechar o realejo, contar os cobres que haviam cantado no fundo do balde de lata.
Pouco mais dava para um pão e algo mais, pouco dava para encher a barriga que estava vazia de tantos anos. Mas assim mesmo, ao passar pela porta fechada do ermitério onde não podia entrar, e depositava um quinhão de esperança naquela caixa de esmolas.
E recolhia ao seu canto, um qualquer canto da velha cidade, cobria-se com as velhas telhas que cobrem todo o mundo, que se viam por entre as telhas de barro que recordavam o velho telhado.
E junto do calor do fogareiro, atiçado pelo fole do realejo, continuava-se a ouvir o som, o alegre som do realejo que animava as noites naquele pátio esquecido, onde desembocava o beco do esquecimento, mas de onde partia sempre a avenida da esperança a cada noite, a cada alvor de um novo dia.
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