sexta-feira, 4 de julho de 2014

Era meio-dia e a noite caiu dentro de mim
O silêncio, meia-noite, era a água que me inundava
Da fonte que corria para dentro de mim
Daquela mortalha que me abraçava nas ternuras
Era meio-dia, e as trevas cobriam-me
A solidão, meia-noite, era o vazio que me preenchia
Tornando éter o espaço dentro de mim
Daquele corpo frio em que me tornava a partir de dentro
Era meio-dia, como se fosse meia-noite dentro de mim
E esperava a madrugada, e desejava que à madrugada sucedesse aurora
E esperava a aurora, e desejava que a aurora desse lugar ao dia

E assim seria meia-noite e dentro de mim o sol brilhava por ser meio-dia.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Fio de luz

Um dia ele quis isolar-se, fechar-se de tudo o mundo, fechar as portas, fechar as portadas, puxar os reposteiros pesados das janelas. Sepultar-se da sua fuga. Rasgou todas as fotos e todos os livros, todas as folhas e velhos registos, empilho-os numa grande pilha onde derramou litros de boa gasolina e ali ficou no meio da escuridão, pegando na pequena caixa.
Com um ruído a escuridão quebrou-se, acendeu um pequeno fosforo. Como pequena e frágil era aquela chama presa a um toco da madeira, e era bonita, e como era bonita no seu tom violáceo …e ele parecia encantado com o fosforo, mas mesmo assim deixou-o cair. Lentamente deixou-o escapar por entre os seus dedos, libertou-o, e ele caiu sobre a pilha de coisas humedecidas em combustível, e explosivamente tudo foi tomado pela cor, pelas chamas, pelo cor que inundava a escuridão do local.
E ele riu-se, e ele dançou em redor das altas labaredas e cantava as velhas canções infantis, e saltava e fazia altos pinos, e fê-lo até as forças acabarem, e fê-lo até as chamas se extinguirem sobre si mesmo num monte de cinzas e por fim caiu.
Tombou com todo o seu corpo, com toda a força sobre o tabuado, e facilmente as lágrimas começaram a jorrar-lhe da cara. Era uma torrente, uma levada constante de água salobra que ia de encontro a pilhas de brasas ainda vivas e que se apagavam com estampidos, e os pequenos pontos de luz rubra que ainda resistiam eram apagadas com toda aquela água e por fim ele ficou na total escuridão quando as cinzas formaram uma amálgama com as lágrimas e ele deixou-se ficar.
Deixou-se ficar a espera que viessem buscar, nas trevas, soluçando, de olhos secos, já não tinha nada que fazer senão esperar…e passaram horas, e passavam dias e sobre ele passava todo o tempo como se não passasse. Esperava, desejava somente que fosse rápida, que fosse rápida a passar sobre ele.
Não soube se adormeceu, se foi o seu corpo que entrou em qualquer letargia, se talvez aquilo fosse como um coma, uma catalepsia que o seu cérebro lhe impunha, uma quase morte que, não o sendo, tornava tudo ainda mais brutal…mas mesmo assim, mas naquele estado a sua iris notou, sentiu aquela pequena diferença de tonalidade na escuridão.
O céu cérebro percebeu que algo se movia na frente do seu olho, e era só um ponto, uma mínima coisa de luz que insistia em passar em frente do seu olhar.
Não ligou, não podia ligar um corpo inanimado não liga a pequenos pontos de luz que brincam na sua frente como um desafio, como uma chamada para uma brincadeira e não se chama um corpo prostrado para nenhuma brincadeira.
Mas a alma, ou lá o que quer que pouco mais restasse daquele corpo de onde o próprio ar já se escapava, sempre havia sido algo curioso e somente a curiosidade era capaz de fazer ceder aquele corpo inanimado, só a curiosidade conseguia quebrar o rigor-mortis e como se nada fosse fez o pequeno e gélido dedo médio mexer-se um pouco, afinal era em seu redor que o ponto de luz teimava em brincar, em redor daquele insignificante dedo.
Tentou tocar-lhe, tentava tocar-lhe, mas o pequeno reflexo fugia a cada investida de toque e a cada tentativa nova frustração, nova inquietação. Quando deu por si já não era o dedo, mas toda a mão que tentava apanhar o fugidio ponto de luz e o corpo ganhava uma nova força, ganhava à inação como se nada fosse, como se nunca tivesse existido resistência e já estava sentado e o sangue, que afinal ainda existia, voltava ao seu fluxo quente, e ele já tentava apanhar com as duas mãos o ponto, os pontos que agora se havia multiplicado e eram uma fileira, uma organizada fileira de pontos de luz, um fio cintilante de luz, tocado e reflectido pelas ínfimas partículas de pó que se levantava das cinzas do seu corpo.
E os olhos seguiam a linha de luz como encantada, como extasiada, reassumindo totalmente e perfeitamente cada uma das funções do seu corpo até então estropiado, e levantou-se, as pernas fraquejaram, a cabeça pesava e parecia tonta, mas cambaleou ao longo do rasto que se formava no ar e caminhava descalço pelos destroços, pisava as cinzas sobre as quais passava atrás da linha que o possuía, que o levava até a parede enegrecida pelo fumo da grande fogueira.
Mas eras mesmo da parede que se escapava o fio de luz. Era do reposteiro de veludo tão bem fechado que o fio de luz se escapava.
A medo não lhe quis tocar. Ficou a admira-lo com os sentidos, sentia o cheiro a queimado, sentia por fim na sua mão, olhou pelo pequeno e insignificante buraco e finalmente sorriu…
Deu dois passos atras e soltou uma gargalhada que vibrou pelo espaço, sentou-se no chão, deixou que a linha de luz que aumentara de intensidade o atingisse bem na cara, no meio dos olhos fechados, e aquela pequena luz, aquela luz que entrava de fora, finalmente fez-se lógica, para ele significava tudo e sorrindo percebia.
E percebeu que a cada novo sorrir, sorrir verdadeiro e franco, vindo de dentro, do seu ser magoado, que cada vez que a linha de luz o fazia gargalhar dentro das ruínas o fio de luz aumentava, ficava maior, e o vazia sentir ainda mais quente, o que aumentava inesperadamente aquela sensação de alegria, de calor, de conforto que entrava dentro do seu peito e a cada sorrir o buraco aumentava, e o efeito era exponencial e a vida reentrava nele como se fosse ar, com a mesma facilidade, com a mesma felicidade.
E ria-se, ria-se tanto que o reposteiro não aguentou, o rasgão foi abrindo e pedaços enormes caiam no meio da poeira do chão, inundando tudo de luz, já não era uma linha de luz, mas tudo era luz e ele ficou sentado a sorrir, porque daquela nova janela, daquela que ele próprio abrira, entrava a jorros a luz e ele ficou ali, ali sentado, a olhar, a mirar a luz, a olhar para a esperança que aquela luz era.

E ficou feliz, por estar certo naquela esperança que o iluminava      

sábado, 17 de agosto de 2013

Maquina de escrever

No fim da primavera a casa era caiada, arrancava-se o salgadiço do inverno que ficava agarrado as paredes e voltava aos alvores da sua brancura.
No início do verão as portadas eram abertas, o chão afagado, o pó expulso, os estofos batidos, as cadeiras de verga envernizadas e postas no alpendre, os cortinados de linho fino e branco agitavam-se quando naquele fim de tarde, a casa esperava por ele.
Pela estrada que vinha ao longo da costa, de norte para sul, percorrendo as falésias e serpenteando pelo meio dos pinhais, levantava-se um nuvem de pó, o som que o mar abafava de um carro.
Os pinheirais agitavam-se com a brisa, soltavam o cheiro a resina e a terra seca, os arbustos rasteiros perfilavam-se ao longo da estrada, de alecrim e tomilho que apimentavam e refrescavam o ar.
A casa via-se ao longe, e o seu olhar estava preso a ela fazia algumas léguas a sua magia, a velha magia que sempre fizera, de magnetizar, de prender nos seus idílios.
Parou o carro, deixou-se ser tomado pela nostalgia do passado, fechou os olhos na esperança de ouvir algo mais do que o silêncio, mas era somente isso, o silêncio que o rodeava ali no cimo do promontório onde a velha casa cuidada e pintada e arejada e pronta a ser abrigo.
Tirou a mala de dentro do carro, coisa pouca que o verão pouco pede, tirou a mala rígida onde trazia sempre, afinal, aquela que era a sua velha companhia, a máquina de escrever. Os pés faziam as tábuas gemer, talvez uma qualquer forma de a casa felicitar aquele regresso.
Pousou a mala da roupa no chão, a máquina de escrever sobre a velha secretaria que se debruçava pela janela grande sobre o mar. Sobre ela empilhavam-se velhos papeis, memórias antigas, dactilografadas por aquela mesma máquina num espaço de tempo tão longínquo que as pilhas amareleciam ao sabor dos velhos tempos, talvez guardando dentro delas os sorrisos, os sorrisos, os cheiros do tempo em que haviam sido brancas e novas.
Pegou nelas, desfolho-as, não percebeu o que estavam escritas nelas, nada daquilo tinha sentido. Levo-as consigo, e com algo fresco que tirou do frigorífico, ficou sentado na velha cadeira de baloiço, olhando o mar, deixando a madeixa rebelde de cabelo que lhe dançava sobre a testa ao sabor do vento.
Deixou-se ficar olhando o sol que tombava, as cores de fogo que se espalhavam pelas falésias, pelas pedras altas que se erguiam do mar.
Sobre as pernas estava a pilha de folhas, presas sobre a mão, folhas que o vento queria para si a medida que o sol descia e sobre a terra a calma e o rubro tomava contava de tudo. Levantou-se quando por fim Apolo chegava as águas, por fim tirou a mão da resma de folhas, por fim o vento reclamou aquilo que era seu por direito e, com uma rajada quente vinda de sul, desfez a pilha de folhas, levou pelo ar aqueles papéis amarelos que tomados da cor do por do sol semelhavam-se a penas, a penas de um pássaro de fogo que se erguia dos profundezas dele e se tornava finalmente livre.
Espalhavam-se pelo ar, lançavam-se ao mar, ficavam presas em algumas urzes secas e eram fustigadas pelo vento. Quando por fim o céu se cobriu de anil, de púrpura e das cores do crepúsculo, só nessa altura ele entrou em casa, liberto de todo aquele peso, feliz por se ter conseguido agarrar a terra, feliz por não se ter lançado ele mesmo ao vento.
Sentou-se a secretaria, ligou a luz do candeeiro de ferro, destapou a máquina de escrever, tirou folhas novas, brancas e prontas a novas coisas, desejosas de tinta como ele estava desejoso afinal de vida.
Fechou os olhos, cerrou os dedos, abriu as mãos sobre o teclado e começou a encher a casa daqueles ruídos, do bater de teclas, do alegre matraquear das teclas que tornava inaudível o som do mar, que tornava surdos o som das folhas de papel soltas e livres que batiam ainda contra as janelas e as paredes brancas da casa que se cobria agora pelo estrelado céu.

E ele ali ficou, a escrever, a escrever cada dia do seu futuro 

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Infinito

O campo salpicava-se de arbustos de lavanda. Por todo o lado, enquanto a tarde adormecia, se sentia o seu doce odor. Perdido no meio do campo a pérgula montada como uma tenda parecia o melhor refugio para aquela alma que deambulando procurava conforto, um balsamo para lhe apaziguar as feridas do caminho e os panos que se agitavam chamavam o caminhante.
O silêncio, o estranho silêncio que povoava o campo, o vento que não se conseguia perceber de onde vinha, vindo de todos os lados, o cheiro era a única nota, o cheiro e as cores que se tornavam mais fortes.
Entrou no limiar dos panos, da tenda, permitindo finalmente olha para dentro daquele espaço. O chão estava coberto com almofadões que rodeavam uma pequena mesa onde se dispunha um copo, uma jarra com água fresca.
Um novo cheiro juntou-se então, o cheiro a maça e a canela que ficava suspenso no ar numa pequena nuvem. Afinal não estava só, antes dele já alguém ocupava o seu refugio.
Uma mulher que, deitada, fumava de um grande cachimbo de água. Não se surpreenderam, sabiam que se iriam encontrar. Ele descalçou-se, libertou-se do pó do caminho, e tomou o seu lugar, de frente, olhando para aquela mulher que o olhava.
-vim de longe em busca de refugio…
- Aqui tem o refúgio que procura, toma este que sempre foi o teu lugar
Sentou-se, sabia que tinha terminado a sua jornada, sabia que a solidão do caminho o havia levado até ali. Chegara ao seu abrigo.
- Sabes quem eu sou? - perguntou aquela mulher de olhar cuidado e pacifico
- Sim seu…sou eu, o pedaço de mim que andava perdido, aquele pedaço que um dia deixei partir sem dar conta, a minha chave de abobada, aquele simples pedaço de tijolo que mantinha o meu mundo de pé. Esta na minha frente aquilo que devia estar ainda dentro de mim, que nunca deveria no fundo ter quebrado, fragmentado…você é um pedaço de mim, aquele pedaço de mim que eu andava a procura e que finalmente pode encontrar, no lugar onde eu sabia que estaria…mas tinha que fazer o meu caminho, tinha que sentir o pó na minha cara, os pés a doerem, a dor, o desespero a cada passo,  perder-me mil vezes, para por fim perceber que estava na altura de a reencontrar…sabia que estava aqui, sempre soube. Mas somente agora te posso dizer que te encontrei, por somente agora posso dizer que te tinha perdido, que sentia a tua falta, pois somente aqui, olhando no teu olhar posso dizer que esta tenda, neste campo, neste tempo perdido…somente aqui eu te podia encontrar, somente aqui podia ser o meu refugio…
Ela sorriu, lançou uma baforada de fumo para o ar no meio de um sorriso, olhou para ele…convidou-o a beber
- bebe, bebe dessa água que vai matar essa sede que o caminho te deu, toma a água que vai aliviar a sede que te mata por dentro…bem vindo ao teu refugio, fica o espaço é teu…

Levantou-se, o vestido branco foi tomado pelo vento, o olhar fitou o horizonte, estava na altura dela partir, olhou a derradeira vez para trás, olhou para a marca que ele trazia no ante braço, uniu permanentemente as pontas laças, construiu um infinito naquele sítio onde esse infinito havia sido quebrado. Ele soube que a partir de então jamais lhe iria doer o infinito quebrado que o caminho lhe havia desenhado a tinta na pele e a dor num qualquer sitio que havia ficado pelo caminho.
Ela não disse mais nada, olhou em frente, e com volúpia afastou-se, partiu para oriente, pelo meio do caminho rodeado pelos arbustos de lavanda, já não era precisa, a sua função estava comprida.

Ele ficou no seu refúgio, só, solitário…mas com a certeza de finalmente estar no sítio certo, no seu refúgio, no seu abrigo, de estar finalmente num sitio onde pudesse escrever a tinta forte o seu próprio destino, o seu futuro, os seus desejos…onde por fim pudesse escrever o seu próprio infinito!

terça-feira, 23 de julho de 2013

Voar

E naquele dia ele somente sentia aquilo que não podia sentir, o éter que o rodeava. E aquele vazio que o sufocava, que o oprimia a cada dia, não o deixava voar, não o deixava abrir as assas, não o permitia ser livre, e como ele precisava de ser livre…mas por mais que tentasse as essas estavam pressas, presas dentro dele mesmo…Ai e como ele queria ser livre, como ele desejava ter tudo aquilo que afinal não tinha, como ele desejava ser tudo aquilo que afinal já era sem perceber que era, ai como ele desejava erguer, esticar, abrir bem as assas, as suas assas e poder dar um salto, um salto no cimo do penhasco , sem medo do fundo, sem receio de cair, porque afinal ele voava…aí como eu gostava de finalmente voar… 

quinta-feira, 11 de julho de 2013