terça-feira, 20 de setembro de 2011

Realejo...

Naquele dia, como em todos os outros, o carrinho aparecia ao fundo da rua, ainda com as brumas da madrugada a pairar no ar. O chiar da roda, era insonoro, mesmo antes do buliço na esquina da Rua Augusta com a Rua da Betesga. Nos bolsos do sobretudo, envoltos em folhas de jornal do dia anterior, as pedras aquecidas no borralho do fogareiro permitiam ao frágil corpo se manter no frio daquela manhã. Os pés enregelavam-se sobre a calçada coberta com uma fina camada de geada que desapareceria aos primeiros passos do corrupio da cidade.

Por fim parava de empurrar o carrinho. Por fim abria a caixa, colocava o baldinho de chapa a jeito, e, como um sopro, como se todo o mundo dependesse daquela manivela de latão polido, como se nada respirasse antes daquele instante, como que se tudo estivesse morto antes daquela manivela começar a rodas. E naquele instante, no momento em que o fole enchia, em que a primeira nota ameaçava tocar, e a vida na rua começava.

O realejo encheu a rua de sons, de musica, daquela musica que enchia de vida a mortandade dos dias, o ruído metálico, a música que animava o inanimado….e que, eu parar, voltava a mergulhar toda a rua naquele marasmo, na solidão da noite que já era.
Altura de fechar o realejo, contar os cobres que haviam cantado no fundo do balde de lata.

Pouco mais dava para um pão e algo mais, pouco dava para encher a barriga que estava vazia de tantos anos. Mas assim mesmo, ao passar pela porta fechada do ermitério onde não podia entrar, e depositava um quinhão de esperança naquela caixa de esmolas.

E recolhia ao seu canto, um qualquer canto da velha cidade, cobria-se com as velhas telhas que cobrem todo o mundo, que se viam por entre as telhas de barro que recordavam o velho telhado.
E junto do calor do fogareiro, atiçado pelo fole do realejo, continuava-se a ouvir o som, o alegre som do realejo que animava as noites naquele pátio esquecido, onde desembocava o beco do esquecimento, mas de onde partia sempre a avenida da esperança a cada noite, a cada alvor de um novo dia.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

A tua arcada de Prata...

O brinco que te pendia da orelha, essa arcada de prata, foi herança única de tua mãe.

O par fora ao prego, e por lá ficara. Os copos de vinho eram melhores que a prata que se pendia nas tuas orelhas.

Acabaste por ficar somente com uma. Mas era essa única arcada que fazias questão de levar a romaria.

O lenço atava-se na tua cabeça como se fosses para o campo, para a frente da junta de bois, ou fosses ceifar nas jornas longas de todos os dias.

Podia ser dia santo, podia ser dia de tudo, para ti era dia de ver a Deus, e só isso te fazia trocar o avental cerzido, pelo de pano de chita, outra herança que a alfazema salvava da traça e dos bichos.

Não te aproximavas do andor. Não te deixavam aproximar. Os teus tamancos de pinho envergonhavam-se, não se conseguiam aproximar dos sapatinhos de sola de cartão e venilo.

Os santos passavam, o prior, que só vias de ano a ano, estava mais velho e barrigudo, e o incenso aspergido fugia da tua envolvência.

Mas era a ti, era aos teus olhos que parecia, somente aos teus, os mais vividos, que o sorriso daquela estátua de madeira, daquele serio objecto de devoção, com os semblante carregado de dor e de padecimentos, somente para ti, acabava por sorrir.

Quando chegou a tua hora, o avental de chita foi a tua mortalha, e a única herança que podias deixar era a arcada de prata, desemparelhada.

"Deixem-na à senhora que me sorri, todos os anos me sorri. Ela que fiquei com o meu brinco."

Foi entregue ao prior, que não lhe deu valor. Foi mandada para o tesouro, e no ano seguinte, no dia da romaria, no meio de tanta confusão que as senhoras de sapatos de cartão e venilo faziam, ninguém deu pelo erro, e a arcada de prata, em vez das de ouro, foi colocada naquela estátua de dor magoada.

O prior deu pelo erro, a irmão do dito tentou retirar, não tinha forças. Veio a mulher do regedor, do corregedor, do senhor doutor e ainda a do taberneiro, e ninguém conseguiu tirar a arcada da doce orelha da estátua.

Ainda tentaram, mas o grito “ ai que partem nossa senhora!” fez cair por terra as tentativas.

Naquele ano o andor saiu a rua, a estátua, de madeira polida, levava só um brinco, mas o que se ouvia no meio do povo era diferente:

“- Olha como sorri Nossa Senhora das Dores!”

E sorria, depois de tantos anos finalmente tinha algo que sempre invejara e deitara o olho.

Finalmente na sua orelha tinha a arcada de prata que era tua, herdada de tua mãe, desemparelhada pelo prego e pelo vinho, largada pela tua morte na sua orelha santificada para sempre.