O brinco que te pendia da orelha, essa arcada de prata, foi herança única de tua mãe.
O par fora ao prego, e por lá ficara. Os copos de vinho eram melhores que a prata que se pendia nas tuas orelhas.
Acabaste por ficar somente com uma. Mas era essa única arcada que fazias questão de levar a romaria.
O lenço atava-se na tua cabeça como se fosses para o campo, para a frente da junta de bois, ou fosses ceifar nas jornas longas de todos os dias.
Podia ser dia santo, podia ser dia de tudo, para ti era dia de ver a Deus, e só isso te fazia trocar o avental cerzido, pelo de pano de chita, outra herança que a alfazema salvava da traça e dos bichos.
Não te aproximavas do andor. Não te deixavam aproximar. Os teus tamancos de pinho envergonhavam-se, não se conseguiam aproximar dos sapatinhos de sola de cartão e venilo.
Os santos passavam, o prior, que só vias de ano a ano, estava mais velho e barrigudo, e o incenso aspergido fugia da tua envolvência.
Mas era a ti, era aos teus olhos que parecia, somente aos teus, os mais vividos, que o sorriso daquela estátua de madeira, daquele serio objecto de devoção, com os semblante carregado de dor e de padecimentos, somente para ti, acabava por sorrir.
Quando chegou a tua hora, o avental de chita foi a tua mortalha, e a única herança que podias deixar era a arcada de prata, desemparelhada.
"Deixem-na à senhora que me sorri, todos os anos me sorri. Ela que fiquei com o meu brinco."
Foi entregue ao prior, que não lhe deu valor. Foi mandada para o tesouro, e no ano seguinte, no dia da romaria, no meio de tanta confusão que as senhoras de sapatos de cartão e venilo faziam, ninguém deu pelo erro, e a arcada de prata, em vez das de ouro, foi colocada naquela estátua de dor magoada.
O prior deu pelo erro, a irmão do dito tentou retirar, não tinha forças. Veio a mulher do regedor, do corregedor, do senhor doutor e ainda a do taberneiro, e ninguém conseguiu tirar a arcada da doce orelha da estátua.
Ainda tentaram, mas o grito “ ai que partem nossa senhora!” fez cair por terra as tentativas.
Naquele ano o andor saiu a rua, a estátua, de madeira polida, levava só um brinco, mas o que se ouvia no meio do povo era diferente:
“- Olha como sorri Nossa Senhora das Dores!”
E sorria, depois de tantos anos finalmente tinha algo que sempre invejara e deitara o olho.
Finalmente na sua orelha tinha a arcada de prata que era tua, herdada de tua mãe, desemparelhada pelo prego e pelo vinho, largada pela tua morte na sua orelha santificada para sempre.